Tuesday, October 30, 2007

CAMINHOS

Lá dentro, porém, não havia placa nenhuma. Quando a Maria deu por isso estava no palco, de novo (alguma vez teria saído de lá?), sem vestígios de porta atrás de si. Desta feita, era ele quem jazia morto.

A sala estava vazia, com a excepção de um espectador que ocupava uma das cadeiras da última fila. A Maria focou o olhar e percebeu, incrédula, tratar-se da sombra do Medo. Esse, encontrava-se cá bem à frente, a rir, estridentemente, a bater palmas, a pedir mais. Ela encostou os olhos e esperou que os ouvidos se fechassem àquele barulho perturbante. As lágrimas corriam incessantemente, sem que ela as conseguisse fazer parar. Não estava triste: na verdade, não sentia nada. Por isso mesmo as lágrimas não vinham de dentro e não eram salgadas. Eram só... lágrimas. Mesmo assim, molhavam. Encharcavam-lhe os cabelos e o rosto, marcavam-lhe a pele a vermelho, inchavam-lhe os olhos.


Sentiu uma leva brisa: estava de volta ao banco de jardim, com a sensatez ao lado. Talvez a placa fosse um mito. Talvez não. Na dúvida, valia a pena procurá-la, correr atrás do que realmente importava e deixar-se de elementos acessórios ao caminho.
Olhou para o relógio: havia ainda tempo para um croissant de chocolate, como lhe aconselhara uma fada. Levantou-se e sentiu-se de novo ela.

(Acaba aqui).

A um passo

A passagem do barco para a cabana foi relativamente simples: limitaram-se a saltar de um lado para o outro. Antes da porta havia uma pequena plataforma, de pedra, onde pararam os dois, a olhar atónicos como quem diz: “Nem acredito que chegámos”. Permaneceram neste impasse um bom bocado, alternando o cruzamento de olhares com a tranca pesada da porta. (Logo aqui já se vê a diferença, o fio dos outros dois nunca se quebrava).

Foi a Maria quem deu um passo em frente. Pressionou a barra de madeira antiga com as duas mãos, tentou levantá-la, deu murros de raiva, empregou uma força quase animal. Quando ele se decidiu a ajudar, com o intuito de serem dois, ela abriu-se como que por magia.

A Maria perguntava a si mesma o que haveria lá dentro. A luz do Sol não permitia que se percebessem contornos e a curiosidade ruía a pobre pequena. Secretamente desejava encontrar a placa: tudo naquele estranho mundo era possível. Repetiu silenciosamente “que seja a placa, por favor, que seja a placa e entrou, seguida por ele.

Fotografia: http://olhares.aeiou.pt/trancas_a_porta/foto1530232.html

Saturday, October 27, 2007

(RE)Construção

O corpo atraía-o e repelia-o, como se tivesse medo que ao toque se desvanece-se em pó. Como se tivesse medo do significado latente de um gesto terno ou de uma palavra melosa.

Ainda assim, puxou-a de novo para si. Voltou a encostar a cabeça da Maria, desta vez uma cabeça morta, ao seu lado esquerdo. Virou-lhe o coração do avesso, para não debotar, e pô-lo a secar ao sol. Depois, entreabriu-lhe os olhos, soprou-lhe um rasgar de vida nos lábios e pegou-lhe na mão, como se nada se tivesse passado. Assim, de dedos entrelaçados, remaram até à cabana. A Maria não se sentia ela mas também não era mais ninguém.

Descaminho

A água superficial do lago, aquecida pelo Sol, debatia-se com a profunda, fria, numa relação de amor-ódio invisível que resultava numa corrente fortíssima. A Maria debatia-se com os remos, ele com os braços.

O estouro físico da corrida e do desmaio, aliados ao esbracejar frenético, transformaram-se numa bola de ferro presa aos pés dele. A Maria percebe e, com a cara pintada de branco pelo medo, voa a ajudá-lo. Desprende o metal pesado, deita-o no barco e dá-lhe água a beber, com calma. Ele tosse e vomita um líquido viscoso que se mistura com a água dela, formando um elixir perigoso de sujidade diluída.

Ao acordar, sente-a. No mesmo instante, atira-a borda fora e pressiona-lhe a cabeça, com toda a força que a reanimação lhe entregou. Deixa que as lágrimas do lago lhe invadam o cérebro e despeja-lhe o elixir perigoso sobre o coração. Emprega aquilo que nunca será neste momento, privando-se, ao mesmo tempo, de sentir qualquer emoção. Dando-a como morta, deixa o corpo bonito a boiar na água aparentemente calma e deita-se no barco, a dourar o rosto e as pernas e descansar os braços.

Thursday, October 25, 2007

A caminho da cabana

Quando recuperaram a consciência estavam noutro lugar, desconhecido. Parecia que tinham sido ambos transportados para um mundo paralelo, sem conhecimento ou consentimento. Nenhum sabia que tinha acontecido o mesmo ao outro, uma vez que estavam separados por um lago enorme. Era um sítio estranho, muito estranho. Havia ainda uma cabana (daquelas dos desenhos infantis), de madeira, que se encontrava precisamente no meio do lago. Era ela que cortava o contacto visual que existiria entre eles, não fosse a sua existência.
Na margem da Maria estava estacionado um pequeno barco a remos, pintado de verde, preso com uma corda a um pau debilmente enterrado na terra. De qualquer maneira, no lago não havia ondulação e o tempo era sereno, pelo que não havia perigo. Depois de uma eternidade a olhar em volta e a pensar em coisas banais, a Maria decidiu-se finalmente a saltar para dentro do barquinho e a remar em direcção à cabana.

Do outro lado, porém, não havia nenhum barco verde. Nem vermelho, ou amarelo. Ele levou as mãos à boca, em concha, e gritou: Ai sim? Tomaras tu!”. Só depois do grito já ter fugido é que se apercebeu da estupidez que dissera! Ainda assim, deixou-se ficar. O importante era ter gritado, ter avisado quem quer que fosse que estava ali. O resto, pouco importava, ele nem sabia se naquela terra estranha se percebia o português. Além do mais, doía-lhe o corpo da queda, não lhe apetecia voltar a gritar.

A Maria já ia a meio do caminho quando ouviu um estranho grito. “Estarei maluca?”. Esperou um pouco, atenta, em compasso de espera. Aquele lugar parecia estar a gozar com ela, envolvendo-a numa quietude extrema. Atribuiu o grito à fraqueza e continuou.

Ele, farto de esperar, tirou os sapatos, as calças e a camisa e entrou no lago. Assim que a água lhe deu pela cintura, lançou-se para a frente e começou a nadar.

Tuesday, October 23, 2007

A caminho de um início

A Maria sentou-se num daqueles bancos que estamos acostumados a ver em jardins (o que fazia ele ali, não sei, não perguntem). Doía-lhe a planta chata do pé esquerdo e ainda nem ia a meio. Decidiu dormitar, para ver se recuperava a força física. Passou por um estado de semi-sonambolismo, em que sentia o corpo adormecido e a mente desperta. Lembrou-se de uma música que a marcara há já uns anos, dos Adiemus. As vozes femininas ecoavam e emanciparam-se, passando a fazer parte do próprio caminho. Sentia-se desencantada com a vida, como se dentro dela houvesse um bicho-papão sugador de felicidade. Sentia-se sozinha, desalentada. E parva. Não estava ela preparada para isto? Não. We never are.
Sacudiu o corpo e continuou. Para além da placa, procurava agora também a sensatez que sempre a caracterizara.

Enquanto isto, ele corria, em círculos, feito louco. Estava encharcado em suor devido à má racionalização do esforço. Desidratou e desmaiou.

Fotografia: http://olhares.aeiou.pt/apenas_existir/foto1368262.html

Sunday, October 21, 2007

Sem sentido

Fui. Voltei. Cheguei. Voltei a partir. Dei duas voltas ao labirinto, às cambalhotas, e sentei-me no chão a ler livros infantis.

“Era uma vez…”.

Foi uma vez. Ou duas, ou três. O que é que importa? Nas histórias da meninice também há pessoas más.

Monday, October 15, 2007

Violino (dor de pensar)

Preciso que a vida me corra no sangue e não apenas nos pés. Encosto-me à ombreira da porta e fecho os olhos, com derradeira esperança. Sangro pelo nariz muita da porcaria que, aos poucos, me foi enferrujando o cérebro e sinto laivos de loucura nas pontas dos dedos. Há um alçapão na minha cabeça e eu não tenho coragem de o abrir. Por entre uma tábua rachada sai o som ensurdecedor e pianinho de um violino desafinado. Invade-me os cabos do pensamento e racha-os, destrói-os, incapacita-os, invalida-os. Priva-me de mim: do que fui, do que sou, do que nunca fui e não voltarei a ser.lençóis roxos e rendados que me amarram e sufocam os sonhos, fazendo-os agoniar até ao fim. Não quero ver isto a acontecer, mudem de canal, deixem-me fechar os olhos. Ando para trás, desespero, tapo os ouvidos e grito, numa tentativa absurda de afastar do pensamento o violino e o agoniar de sonhos. Uma força magnética puxa-me em direcção ao abismo da tipicidade.
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Antes de cair, formulo uma pergunta sem entoação: a vida também precisa de uma vida. Percebo que sou eu mesma o violino e, por não me aguentar mais, matei-me.

Nota: Completamente influenciada por Fernando Pessoa (ortónimo).

Conceitos (Apeteceu-me, pronto!)

Há dois conceitos que eu detesto: o de freira e o de namorado de amiga minha. Não que deteste uma freira em particular ou o Tó, o Marco ou o António. Nada disso. Na verdade, tenho até em muita consideração o trabalho de solidariedade levado a cabo por algumas religiosas e, no geral, as minhas amigas escolhem rapazes bem formados e interessantes enquanto pessoas.

Ainda assim, as ideias gerais que caracterizam estes grupos de pessoas não encaixam em mim. Comecemos pelas irmãs de todos nós, mulheres do senhor nosso deus: como é que alguém pode achar que a rezar está a contribuir para um mundo melhor? Se Ele (o tal!) é tão bom como dizem, salva-nos a todos, sem perguntar quantas Avés Marias rezámos ou foram rezadas por nós em vida. Para além do mais, a Igreja Católica assemelhasse-me, nesta estranha relação matrimonial, a uma enorme colher daquelas que o povo diz não se meter entre marido e mulher. Mas enfim, são opções de vida e, quanto a isso, não há mais nada a dizer.

Os namorados das minhas amigas são outra espécie que me faz comichão. Primeiro, “orfanizam-me” nos intervalos. Depois, nas horas de almoço e nas tardes livres.
“ - Hoje ficas na escola à tarde?”
“ - Fico sim, vou namorar”.
Como se isto não bastasse, ainda nos invadem as conversas, materializados em comentários que, para uma pessoa carente, são mais difíceis de suportar do que a dor.

No fundo, talvez a razão resida toda no facto de eu ser uma agnóstica irremediável, solteiríssima.

Thursday, October 11, 2007

Depois do Fim

A Maria sempre foi uma rapariga sensata. Assim que acabou a peça levantou-se e foi à sua vida. Sabia ter todo um Mundo lá fora, à espera, que a aguardava com a mesma firmeza e determinação de sempre. O Mundo não desistia dela, simplesmente porque ela não desistia do Mundo.
Não estava triste. (Há coisas para as quais já “nascemos” preparados). Ainda assim, sentia-se atacada por uma súbita apatia, como se tivesse perdido, ainda que momentaneamente, a capacidade de sentir. Impunha-se uma comichão na cabeça e o coração estava dormente. Achou, pois, melhor sentar-se. Esperou, bebeu um copo de água com açúcar, pôs-se de pé num salto e seguiu em frente. Para onde? A caminho da placa que os outros dois tinham encontrado e onde tinham escrito a base da verdade do Mundo.

Ele foi também, mas por outro caminho. Apesar de não querer acreditar, está escrito nos princípios da nossa natureza que todos nos dirigimos para lá. Uns chegam, outros não. Eles conseguiram, mais tarde (bem mais tarde!), daí a muito tempo. Separados. Por caminhos diferentes, em alturas diferentes. No entanto, uma coisa tiveram em comum: foram a pé. E nunca se esqueceram quão importante tinha sido o outro para aprenderem a andar.

Wednesday, October 03, 2007

Antes do fim

O mel pinga e empapa-lhes os cabelos. Olham para cima e riem gargalhadas francas e honestas. Entrelaçam os dedos, melosos, e brincam com as mãozitas: com os nós dos dedos, com as linhas da vida, com o encaixe do pulso. Percorrem o braço um do outro, com a palma aberta e reguila. Chegam por fim aos olhos, já com pele e roupa completamente untuosas.

“- Hum, é doce!” – diz a Maria, provando um pingo que lhe caiu nos lábios e arregalando a expressão de prazer.

“- Diz que gostas de mim” – pede-lhe.
“Ai sim? Tomaras tu!” – replica, enquanto lhe puxa a cabeça e a encosta junto ao peito, do lado esquerdo, sempre do lado esquerdo.

O mel cai, vai pingando. Há histórias em que chovem flores ou em que se ouvem sininhos. Nesta, há um mel estranho que cai de lado nenhum. Nesta história, meloso de mel, não de lamechas. Isso é que não: isso é que nunca!
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Nota da autora: Para que se perceba, recomendo a leitura deste.