Wednesday, September 26, 2007

Construção do fim

A Maria riu, estridentemente, na cara dele.

“Ora toma!”

É mesmo bem feito, pensou a assistência. Um riso que corta, que goza, que lhe rasga o peito. Um riso que o humilha mais do que tudo, que o despedaça. O público gosta, pede mais. E ela volta a rir, mais alto, cada vez mais alto. Pára, subitamente. Roda em pontas e cai-lhe nos braços. Perplexo, ele procura no subconsciente uma maneira de lidar com aquilo, de lidar com ela. Cada movimento da Maria é pensado, premeditado. Têm muitas noites de reflexão, os gestos dela. São compostos de muitas insónias, que os tornam perigosos e independentes. E dão cabo dele, sempre e cada vez mais.

“Ai sim? Tomaras tu!”

Espertinha, hem? A usar as frases dele. As fraquezas dele. A usá-lo a ele mesmo, como se de uma marioneta de corda se tratasse. Pinta a cara de branco e assombra-o, desenha-lhe rugas na face e aponta-lhe para o “pneu” de gordura que subitamente lhe surgiu na barriga.

“És um velho. Ninguém te quer”.

Suores frios, muitos suores frios. Ela agarra num copo de cerveja, enche-o com fragmentos da vida de boémia dele e dá-lho a beber. Rejeita, num gesto nada firme. Bebe ela, de um trago. E cai morta no chão, de olhos abertos. Ele percebe muita coisa, neste momento. Percebe quase tudo. A Maria é parte de si: é a representação do seu próprio fim, fim esse que ele aprendeu a amar, pela convivência diária. Mas, ao tocar no corpo dela, sem vida, odeia-se mais do que tudo: odeia o desfecho eminente, construído com todo o seu empenho.

O pano cai. A assistência está apática. Ao fundo, lentamente, cresce a sombra do Medo.
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7 comments:

Anonymous said...

Se te disser provavelmente nem irás perceber porquê. Mas olha querida, revi-me e imaginei-me em linhas desse texto.

Joana said...

o pneu na barriga. ahah és tão tonta, miúda. já sabes que gostei, para não variar.. pff, os meus comentários são mesmo monótonos.


adoro-te, posso?

Luisa Oliveira said...

Rita - É bom saber que escrevi qualquer coisa que alguém percebe. Mas não é propriamente bom sentires que encaixa em ti, desejo-te muito melhor ^^

Ju - Podes pois. Não vou perguntar, seja qual for a resposta, adoro-te (quero lá saber da autorização!) :)

SA. said...

É o chamado tiro no pé.

Daqui dá para ver um buraco enorme^^

Luisa Oliveira said...

Sarinha - É isso mesmo ;)

Maria João said...

Essa última frase diz tanto. Tanto. Adorei!

: ) *

Luisa Oliveira said...

Obrigado querida Maria :)