Sunday, September 30, 2007

Jogo limpo

Deixei de jogar à defesa e aboli as linhas de limite de campo. Que se lixem as consequências! Se o Mundo acabar, hoje à tarde ou amanhã, tem muito tempo para se reconstruir.

Dito isto, liberto-me de mim. Dou-me tempo, respiro fundo, descalço-me e corro pela floresta dos sonhos, de braços abertos. É aqui que me sinto bem: quando for grande vou construir uma cabana e transformar, num toque de mágica, as bonecas numa família de verdade, com vida. É aqui que quero estar, amo esta floresta mais do que tudo. Graças a ela, perdi o medo de ter medo: encaremos o percurso com natural simplicidade.
Depois de um curto passeio com a minha decisão, percebo que alguém me calçou as pantufas: estou confortável. Tão confortável que faço uma almofada de caruma, cobro-a com folhas de eucalipto, deito-me e adormeço quase instantaneamente.

A partir de agora, tens tu o apito. Avisa-me quando o recreio acabar e joga limpo, por favor.

Wednesday, September 26, 2007

Construção do fim

A Maria riu, estridentemente, na cara dele.

“Ora toma!”

É mesmo bem feito, pensou a assistência. Um riso que corta, que goza, que lhe rasga o peito. Um riso que o humilha mais do que tudo, que o despedaça. O público gosta, pede mais. E ela volta a rir, mais alto, cada vez mais alto. Pára, subitamente. Roda em pontas e cai-lhe nos braços. Perplexo, ele procura no subconsciente uma maneira de lidar com aquilo, de lidar com ela. Cada movimento da Maria é pensado, premeditado. Têm muitas noites de reflexão, os gestos dela. São compostos de muitas insónias, que os tornam perigosos e independentes. E dão cabo dele, sempre e cada vez mais.

“Ai sim? Tomaras tu!”

Espertinha, hem? A usar as frases dele. As fraquezas dele. A usá-lo a ele mesmo, como se de uma marioneta de corda se tratasse. Pinta a cara de branco e assombra-o, desenha-lhe rugas na face e aponta-lhe para o “pneu” de gordura que subitamente lhe surgiu na barriga.

“És um velho. Ninguém te quer”.

Suores frios, muitos suores frios. Ela agarra num copo de cerveja, enche-o com fragmentos da vida de boémia dele e dá-lho a beber. Rejeita, num gesto nada firme. Bebe ela, de um trago. E cai morta no chão, de olhos abertos. Ele percebe muita coisa, neste momento. Percebe quase tudo. A Maria é parte de si: é a representação do seu próprio fim, fim esse que ele aprendeu a amar, pela convivência diária. Mas, ao tocar no corpo dela, sem vida, odeia-se mais do que tudo: odeia o desfecho eminente, construído com todo o seu empenho.

O pano cai. A assistência está apática. Ao fundo, lentamente, cresce a sombra do Medo.
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Tuesday, September 25, 2007

Pintores de pessoas

Nem toda a gente tem talento para pintar em pessoas. Os artistas de tela, toda a gente conhece e reconhece. Mas, digo-o eu, pintores de pessoas são bem mais raros. E não deixa de ser uma forma de arte.

Conheço uns poucos. Meia dúzia, que nem se apercebem do seu papel de revolução social. E nós, obras de arte deles, nem sempre lhes dizemos o que são, nem sempre nos deixamos assinar (porque nos queremos emancipar e juramos que conseguimos ser “um quadro com pernas”). Hoje em dia, as voltas de mentalidade fazem-se com afecto. E muitas cores, claro.

Tenho vários arco-íris em mim. Felizmente, sou uma daquelas pinturas em que houve muita colaboração, sou composta por estilos e técnicas muito diferentes, graças à capacidade de trabalho de grupo. Resta-me dizer “obrigado” e pôr-me à disposição: assinem-me, exibam-me como obra vossa. E não se preocupem se o efeito final não for o esperado: por muito bom que seja o criador, não muda a qualidade do material.

Sequência de Natureza

As escadinhas vão dar à praia. São de pedra, irregulares, esculpidas pela Mãe Natureza. Há pouca areia: o mar passa o tempo a levá-la e dá-nos apenas breves segundos para a pisarmos e fugirmos a correr da ondulação ligeira e fria. Não sou fanática disto: não passo horas a fitar o horizonte, não adoro o ar salgado que me empesta a pele. Mas confesso que aqui se respira paz. Organizo as ideias por ordem alfabética. Reparei hoje, nos olhos de uma pessoa amiga, quão fácil é fazer os outros sentirem-se bem, ficarem bem. É só querer: e, nesse querer, ficamos bem, também. Numa sequência de vontades, esculpimos degraus em nós, como os da praia. Porque num acto de afecto está muita força natural: está o máximo de natureza que se pode concentrar num só momento. Criamos projectos, muitos projectos. E conhecemos mais pessoas por quem passamos a nutrir carinho, vamos acumulando mais natureza e tornamo-nos seres verdadeiramente emocionais (sim, para além de racionais, somos emotivos, uma qualidade demasiado boa para ser tantas vezes esquecida). Amamos. Vivemos. Sonhamos. Queremos bem.

Pelos outros? Sim. E por nós. Somos egoístas, ecologicamente egoístas (como eu disse um dia, num outro contexto).
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Thursday, September 20, 2007

Minha querida Matilde

A Matilde vive num castelo igual aos da realeza. Tem muralhas altas e muitas nuvens branquinhas como cenário. O envolvimento é tão bonito que, a primeira vez que lá estive, pensei que uma fada tinha colado papel de parede nas janelas. A Matilde não usa vestidos compridos nem uma coroa na cabeça mas é a princesa mais verdadeira que eu já conheci. E, por isso, é muito comovente vê-la a descer do trono, a correr, de encontro aos meus braços. A cabecita dela fica algures entre a minha barriga e, quando ela a vira para cima para me dizer mágicas palavras de bom dia, vejo-lhe os olhos a brilhar. Depois disso, liberta-se e dá-me a mão. É aí que navegamos as duas num pequeno barquinho a remos, de madeira, pelo seu futuro. E vemos coisas lindas, povoadas de ternura e meiguice. Peço-lhe para ficar nas recordações do que está para vir e não espero pela resposta. Deixo apenas o pedido no ar.
Damos um saltinho ao caminho que ainda não desenhei. É com uma exclamação de espanto que me apercebo de todas as mudanças: acreditas, querida Matilde, que antes de aqui vires, nada disto era assim?

Um dia vou querer ser mãe...

Wednesday, September 19, 2007

A borboleta-anjo

Asas. Asas. Asas.

Sonhos. Sonhos. Sonhos.

Era uma vez uma borboleta que queria ser anjo. Queria muito. Queria tanto, de tal maneira que, um dia, mergulhou as suas lindas asas coloridas em lixívia. Desvairada pelo desejo desmedido, não se apercebeu da mutilação que impunha a si mesma: a ruptura com a sua essência, com o que de mais belo havia em si. Ficou doente. Muito fraquinha, deixou de conseguir voar. Já não era sequer borboleta: era só meia borboleta, um quase nada que um dia tinha sido tudo.

Era uma vez um anjo que queria ser borboleta. Queria muito. Queria tanto, de tal maneira que, um dia, pintou as suas lindas asas brancas com lápis de cera de várias cores. Desvairado pelo desejo desmedido, não se apercebeu da mutilação que impunha a si mesmo: a ruptura com a sua essência, com o que de mais belo havia em si. Ficou doente. Muito fraquinho, deixou de conseguir voar. Já não era sequer anjo: era só meio anjo, um quase nada que um dia tinha sido tudo.

Era uma vez uma borboleta linda, linda, linda. Era uma vez um anjo lindo, lindo, lindo. Um dia encontraram-se e amaram-se com tal carinho que se fundiram um no outro. E assim nasceu, no paraíso dos encantos, a coisa mais bonita que se viu até hoje: uma borboleta-anjo, a representação de todos os sonhos e todas as magias do Mundo.

Friday, September 14, 2007

Inventário de Sonhos

Não gosto da melancolia do último gelado de Verão. Refugio-me na minha almofada e ignoro o arco-íris que cria a ponte entre as minha lágrimas e o meu sorriso. Faço birra. Bato com o pé, refilo. Não quero chocolate: quero a areia de volta, quero as ondas, quero gelados a pingar. Abraço-me ao último deste ano e murmuro-lhe palavras de carinho.
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"- Prometes que voltas?"
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Quando trinco o último bocadinho da bolacha, tomo uma decisão: chegou a altura de fazer um inventário de sonhos. Vou -los todos em cima da cama, ordená-los, numerá-los e voltar a encaixa-los em mim. A lista é para guardar dentro da caixa de sapatos que decorarei especialmente para a ocasião. Assim, estou segura: em pleno Inverno, poderei dar férias aos cobertores. Terei o bastante para me aquecer.
No entanto, não deixarei as coisas apenas assim. Tenho medo do papel: não é, de todo, material seguro. Portanto, tirarei uma cópia, imprimida em bocadinhos de nuvem. Vou enrolá-los em forma de canudo e confiarei na Fada Sininho, para que mos guarde para sempre.
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Tuesday, September 11, 2007

Uma viagem

Ente nós há uma distância de dois dedos. Não é uma quebra de harmonia: é simplesmente o espaço que os nossos olhos exigem para se encontrarem e transmitirem entre si raios de lua. Sou pescada. Raptas-me de buga e roubas-me o tempo que o relógio tanto se esforça por impor. Grito que não posso, que nem umas sapatilhas tenho calçadas. Não queres saber. E, apesar dos gritos, a minha revolta não é verdadeira, pelo que me deixo ir, de cabelo ao vento e coração de chocolate. A meio da viagem levo a garrafa de água à boca e percebo o que realmente quero. Quero trocar a mesa onde entretanto me sentei pelo teu colo. Importas-te? Garantes que não e partilhamos a sandes amachucada e barata de um bar de beira de estrada, enquanto o Sol nos adorna o horizonte.

É a minha vez de guiar. Segura-te bem. Rabisco na estrada. Traço uma linha torta com os pneus, curva. Oh sim! A vida não é linear, sabias? A maior parte está na sola dos sapatos, no subsolo de nós. E, com o arrastar de pés e emoções, desgasta-se. A vida e o sentimento que constrói um pilar entre nós e o Mundo. Gosto de contos de fadas. E vejo um no teu sereno respirar de fim de tarde. Amarro-te com um velho xaile de fadista e pergunto, com voz segura: " - O menino dança ou é daqueles que faz fita?". Lá, lá, lá. Olhar e ver. Querer e ter. Ser e não ser, sorrir e não poder. QUERO! Tenho, posso e mando. Somos finos. Trocamos a sandes por lagosta e vinho verde, pomos os restos mortais da hipocrisia dentro de um saco do lixo e misturamo-nos com a multidão da cidade. I don't care. You don't care. But we both know the sunset only lasts very few seconds.

Escolinha

Posso dormir contigo Mamy? Só hoje. Amanhã é o meu último primeiro dia de aulas. Tenho borboletas na barriga e a sensibilidade à flor da pele. Estou nervosa. Tal e qual como no primeiro dos primeiros, quando tu e o pai me abraçaram frente ao portão grande. Não argumentes que estou maior: o portão também cresceu, sabes? Logo, a proporção é a mesma. A situação é a mesma. Eu sou a mesma. Nesta altura volto a ser a criança que fui, sem um pingo de experiência de vida a mais. Não sei sequer que conforto do conhecido é esse de que falas. Tremem-me as pernas e brilham-me os olhos. Tenho medo e muito fascínio. Gosto disto. E o medo é exactamente esse: e se eu um dia me esquecer do quanto gosto disto?

Monday, September 10, 2007

Passados dois anos

Passado um ano: http://formalslang.blogspot.com/2006/09/one-year-later.html

Não te vou dizer que me lembro de ti todos os dias. Mas posso dizer-te, com toda a honestidade, que me assaltas de vez em quando os pensamentos, ligado a uma recordação qualquer. São fragmentos teus: que permanecem vivos e que te fazem permanecer vivo. Porquê? Bem, não eras o meu melhor amigo, em parte por causa da diferença de idades (que, apesar de não ser astronómica, era a suficiente para pertencermos a fases distintas da adolescência). No entanto, tínhamo-nos em muita conta. E tu eras muito do que eu sonho ser.

Sinto muitas saudades. De te encontrar ocasionalmente, de termos longas conversas, de andares comigo às cavalitas, a correr pela escola. Sinto muitas saudades de tudo. De ti, de quem eu era na altura. Das pessoas que nos rodeavam.

Guardo-te aqui dentro (e aqui estás bem).