Tuesday, November 27, 2007

Na sala

Sentei-me no chão da sala com as pernas cruzadas e um copo de chá à frente. Encostei as costas à parede, deixei tombar a cabeça para trás e fechei os olhos. São horas de me dar tempo, de aceitar as férias de vida que me são impostas. A porta da sala e vão entrando pessoas. Entrando não! – Desfilando. Vão passando pessoas do quotidiano, com conversas banais e de segundos que, no instante seguinte, se desvanecem no ar. As pessoas e as conversas. E eu fico a assistir àquilo tudo enquanto trauteio pensamentos soltos.
Não posso dizer que esteja desconfortável: visto uma camisola de lã preta e umas calças de fato-de-treino roxas; tenho um gorro e umas meias fortes, daquelas que são aderentes a determinados pisos. Não “ligam alhos com bugalhos”, nada combina com nada, poder-se-ia dizer que estou ridícula. Contudo, fisicamente confortável, quente.
Por entre a multidão que entretanto se juntou (deve ser hora de intervalo!) vou descortinando rostos. A Maria acena-me, enquanto um sorriso lhe baila na cara. Está a falar com alguém que está de costas para mim. Não me apetece levantar; retribuo o cumprimento e desenho um sorriso ténue.
Mais pessoas, muitas pessoas. A minha turma ao canto, o pessoal do Instituto em roda, os meus pais junto àquela coluna. A Sininho voa por cima das cabeças, o Hugo está em mim, os meus amigos andam por ali, entretidos nas suas vivências. De vez em quando passam por mim, acarinham-me os cabelos e percebem tudo. (Tu não estás, e é isso que torna a tua presença tão marcante.)
Fecho novamente os olhos, numa tentativa de falsa abstracção. O barulho da corda do relógio irrita-me, atiro-o pela janela (a minha pontaria sempre foi motivo de orgulho). Shiu, pronto, deixem-me ficar. No próximo intervalo já me levanto e interajo com a sala.

Descobri um pau de giz e entretenho-me a fazer desenhos no chão. Os meus 17 anos estão a envelhecer na mesma proporção em que se infantilizam.


Tuesday, November 20, 2007

Alfarrabistas

Há caixotes de livros carentes dos dois lados da rua. Livros pequenos, grandes, de lombadas grossas ou finas, bem cuidados, com folhas comidas pelo tempo e pelas traças. Os alfarrabistas olham-me, por detrás de roupas e vidas andrajosas, e percebem o meu interesse. Aproximam-se e perguntam-me: “A menina procura alguma coisa em específico?” Explico o que pretendo e eles caem-me nas mãos. São livros usados, cujas folhas já foram viradas, cujas palavras já preencheram a vida de muita gente. Sinto-os palpitar: são fragmentos de vida que ali foram deixados, através dos dedos e do que apreenderam do meio envolvente. Sinto-lhes uma certa relutância em deixar o caixote; são vividos, já viram muita coisa, tornaram-se desconfiados. Exigem, por isso, que eu os conquiste. Passo-lhe a mão devagarinho, sopro-lhes o pó, explico-lhes ao ouvido que muito me honraria sua presença na minha estante, que estou receptiva àquilo que me têm a ensinar. Abraçam-me. Pisco o olho aos alfarrabistas e deixo-lhes os trocos da carteira. Guardo os meus novos amigos no saco de papel, com cuidado. Parece-me ouvir um dos mais velhinhos dizer para o da capa azul: “Vamos passar bons momentos na companhia dela, já estava farto de estar parado”.
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Saturday, November 10, 2007

Chega.

Procuro o conforto que me faz falta nos meus pensamentos. Enrosco-me dentro de mim, procuro-me. Agarro em tudo aquilo que poderá servir de retalho: sonhos, ideias, sentimentos, imaginação, aplausos interiores e exteriores, comoções. Teço tudo com uma linha fina e tento cobrir-me com essa manta peculiar – fico meia nua e a assombração do frio de um Inverno quente destrói-me as entranhas. Volto a vestir a roupa banal, companheira do quotidiano. A tranquilidade é-me exterior.

E a vida rola e rebola, como se fizesse pouco de mim.
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Tuesday, November 06, 2007

Bip-bip

Movimentos de corpos e de pessoas, manchas intensas de luz e sombra. É o dia das visitas por excelência, é o dia dos abraços tremidos ou do primeiro choro. Isto é o centro do mundo, onde se acaba ou se começa, por onde se passa, por onde se tropeça.
Metade da multidão traja pijamas; a outra parte veste cores garridas, de formato não estereotipado. Cada pessoa que passa por mim é alguém. Têm uma vida, tal como eu. E são tantas! O mundo, lá fora e cá dentro, não pára. Os acontecimentos sucedem-se, interligam-se, emancipam-se, esquecem-se. Mas acontecem, vão acontecendo.
Alguns dos que se passam cá dentro merecem aplausos completos, daqueles que são uma sequência de risos, sorrisos e palavras vãs. Aplausos daqueles que dispensam palmas. São histórias bonitas e anónimas que não se repetem nunca mais porque, quanto mais não seja, o elenco é diferente.

Outro bip-bip apressado a sair do bolso da bata branca de um enfermeiro cansado. Tudo é vida, até os objectos inanimados. E por duas razões: são fruto dela e existem para ela. Tal como nós, embora com diferenças perceptíveis.

Depois de uma tarde aqui, sentada numa cadeira de plástico, fria e desconfortável, sinto-me meia morta. Não pela dormência das pernas ou por qualquer outro factor físico. Sinto-me mentalmente parada, emotivamente só. Revejo as actividades que faço, aquilo com que preencho os meus dias e não fico melhor: falta qualquer coisa, uma ausência marcante de uma presença em falta. Sou jovem e as revoluções do tempo em que eu nasci já não se fazem de bandeira em punho: há outras maneiras, mais directas, e, acredito eu, mais eficientes.

Dia 1 e 2 de Dezembro, Campanha do Banco Alimentar Contra a Fome. Participem.

Saturday, November 03, 2007

Pote de Chocolate

Tudo começou com uma certeza: na ponta do arco-íris tinha que estar um pote cheio de chocolate. Nada fazia mais sentido! Era, pois, necessários encontrá-lo. Juntas, tentaram recrutar pessoas para incluir na expedição. Havia critérios a seguir, claro, não podia ser toda a gente. Ainda assim, encontraram um punhado de garotos da mesma idade que mantinham os pés da cabeça na Terra do Nunca e partiram, montados em bicicletas com asas.

Como nunca antes alguém estivera junto ao pote, não havia um mapa: felizmente, as fadas sabem ler caminhos nas estrelas e conhecem o dialecto rudimentar mas difícil dos aromas bons.
Lá pelo meio da história houve, como pertence aos desenhos animados, várias andanças emocionantes. Cães de várias cabeças, flores venenosas, peixes barbudos, tempestades de farinha e todo o género de coisas perigosas que possam imaginar. Na verdade, houve episódios que dariam, individualmente, livros de vários volumes.

Tudo está bem quando acaba bem. Chegaram, finalmente, num dia à tarde. Chovia e fazia sol, obviamente. E o pote – oh, o pote! – era tão grande que cabiam lá dentro todas as aventuras da viagem!
Até hoje, estão por lá, a deliciarem-se. Não fazem menções de voltar. A Alice encontrou o País das Maravilhas: elas, estão no Pote de Chocolate. E, de um sítio assim, não se regressa: porque simplesmente deixa de existir para onde voltar.
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Friday, November 02, 2007