Wednesday, April 30, 2008

Parlamento dos Jovens Nacional, 2008

Há coisas que não se escrevem – porque tão-pouco se descrevem. Há cadeiras que nos ajudam a ultrapassar muros (físicos e intelectuais); há conversas em que, simultaneamente, ao descobrirmos o outro, nos encontramos a nós; há teatros cómicos onde o nosso riso não encontra lugar para estranhamente, depois, mais tarde, não se conseguir controlar no meio da marginal; há lugares e ocasiões em que nos sentimos plenos, confortáveis, bem. Isso mesmo – bem. Tanto que nos damos ao luxo de comentar, connosco próprios: "É isto, é isto mesmo." - E não sentimos medo nem dúvidas nenhumas.
Há dias que não queremos que acabem, embora estejamos fartinhos de saber que isso é impossível e infantil. Ainda assim, sentimos saudades e melancolia quando acabam mesmo – para dar lugar a outros, claro está, para dar lugar à rotina: com tudo o que isso tem de melhor e de pior. Mas concentremo-nos no melhor: na perspectiva de outras rotinas que, pelo menos nos primeiros tempos, serão novas.
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Thursday, April 17, 2008

Uma missão

“- Olhe, desculpe, o senhor acredita que podemos mudar o Mundo?”
Iam de ombro em ombro, de pessoa em pessoa, sempre com a mesma pergunta nos lábios. Sorriam, mostravam-se simpáticos. Andaram de passeio em passeio, de rua em rua, de quarteirão em quarteirão. De tempos a tempos, uma resposta que balançava entre a ironia e a simpatia. De tempos a tempos, uma resposta divertida. De tempos a tempos, um desabafo. Na maioria do tempo, o desprezo, a ignorância.
A Maria e o Adulto Jovem tinham uma missão e sabiam que não voltariam a sentarem-se na sombra do prédio antes de a cumprirem. Não porque ganhassem alguma coisa com isso, não porque fosse, sequer, necessário – deviam-no a si mesmos, tinham combinado que o fariam: só por isso.
O tempo estava estranho. Havia uma chuva miudinha a irritar-lhes os cabelos e o campo de visão, fazia frio e calor ao mesmo tempo, o ar estava pesado e custava a respirar. Ainda assim, no intervalo da abordagem entre duas pessoas, eles riam-se. Sem motivo, sem nenhuma razão óbvia. Riam-se porque lhes apetecia e porque, quer eles quisessem quer não, a situação era quase surreal.
Foi o AJ que encontrou a primeira pessoa. Uma senhora pequenina, com ar de mãe atarefada, de meia-idade e meia classe – sim, uma senhora claramente de “meia”. Foi ela que lhe disse:
“- É o que estamos a fazer”.
Ele aceitou a resposta e partiu para a segunda parte:
“- E salvá-lo, podemos?”
“- Primeiro precisamos de nos salvar a nós. Quer dizer, temos que ir fazendo as duas coisas – já não há tempo para podermos ser mariquinhas.”
O AJ acenou com a cabeça, apontou em frente, chamou “-Maria!” (que se lhes juntou a correr), ofereceu o braço à Senhora-Meia e puseram-se os três a caminho do ponto de encontro.

Saturday, April 12, 2008

Ensaio

A Maria acordou com o silêncio e com o desconforto que se sente quando já se está habituado aos olhares esguios dos outros e, de repente, se passa a ser uma pessoa normal. Esfregou o rosto, ensonada, passou a mão pelos caracóis e sorriu para o Velho (que retribuiu). Só depois é que reparou nos outros: naqueles que, durante o seu descanso, se haviam sentado ao longo do prédio e conversavam animadamente uns com os outros. Bem, nem todos, é preciso dizê-lo. Havia quem permanecesse absorto a tudo, a fixar um ponto não definido. O mais estranho do cenário, porém, nem era isso. Era a multiculturalidade. As diferenças. Ricos, pobres, deficientes, afectados, de todas as nacionalidades, de todas as cores, de todas as idades, de toda a gente. Sim, de toda a gente – não a gente toda mas de toda a gente.
A Maria, com as mãos em concha, perguntou ao ouvido do Velho:
“- O que é que se passou aqui?”
“- Nada de especial, pequena. Esta gente estava cansada e sentou-se.”
“- Assim do nada, lembraram-se?”
“-Assim do nada não – a vida cansa, desgasta-se. Por vezes temos que nos dar tempo. Percebeste?”.
Ela acenou que sim. E percebia. Tanto que, para o provar, tocou no ombro do adulto jovem que estava sentado ao seu lado esquerdo e, quando ele virou a cabeça com uma expressão interrogativa, lhe perguntou:
“- Ainda acreditas que podemos mudar o Mundo?”.
Ele piscou-lhe um olho e respondeu:
“- Por algum motivo estou aqui sentado. Está na hora, é?”
“-Está sim. Vamos?”
E levantaram-se, apoiando-se um ao outro.

Tuesday, April 08, 2008

Aparição

A Maria caiu no meio de uma movimentada rua de peões de uma metrópole capitalista qualquer, onde começou imediatamente a ser pisada e empurrada pelos transeuntes. Era como se não existisse. Pior, era como se não devesse existir.
Agarrou em si e sentou-se, muito encolhida (com as mãos a segurarem os joelhos e a cabeça pendente para a frente), na esquina de um prédio alto e com a pintura desgraçada pela poluição do ar. Deixou-se ficar durante tempo indeterminado (mas que pareceu muito), a ouvir excertos de conversas alheias, o ruge-ruge das calças de ganga novas e dos sacos de supermercado e a observar as beatas de cigarros ainda acessas a serem esmagadas por diferentes tipos de saltos-altos.
Foi neste intervalo que, sem que a Maria se apercebesse, um senhor de cabelos brancos e rugas na cara se aproximou dela, com duas mantas dobradas deixado de um braço e um jornal na outra mão. Ficou, num momento de pausa, a observá-la e disse:
“- A menina está a pedir sozinha? Olhe que a si ninguém lhe dá nada! É jovem e forte, pode perfeitamente trabalhar – pensam eles. Ninguém quer saber o que aconteceu consigo”.
A voz era doce e meiga, inspirava confiança. A Maria percebeu que aquele Velho a percebia* e respondeu:
“- Não estou a pedir dinheiro”.
O Velho sorriu (tristemente) e passou-lhe a mão pelos cabelos:
“- Aqui ninguém sabe dar outra coisa. E, às vezes, nem isso.”
Olhou para o céu e para uma montra onde dois manequins de plástico se olhavam de forma vazia (eram de plástico, pois então!) e, depois de um suspiro, sentou-se ao lado da Maria, tapando as pernas de ambos com uma das mantas.
A Maria, silenciosamente, sem pedir (nem com gestos), encostou a cabeça ao ombro do Velho e dormiu. Ele deu-lhe a mão e pensou de si para si:
“- Depois falamos pequena. Agora descansa.”
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* repetição intencional
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Wednesday, April 02, 2008

Voo de baptismo

A Maria gosta de extremos. Descobriu isso no outro dia, enquanto se passeava pelas ruas de uma cidade grande e sentia, ao mesmo tempo, vontade de chegar o nariz ao tubo de escape dos carros e de se roçar nas árvores. Não gosta de tudo – mas gosta de muitas coisas. E sente, quando está sozinha, que não consegue decidir que tipo de vida quer, que não sabe ao certo a diferença entre o bem e o errado. Finge que sabe, para não decepcionar ninguém. Mas, na verdade, tem mais dúvidas do que aquelas que sabe exprimir por palavras.

Sentada no baloiço, lê um jornal antigo que apanhou do chão. Está sujo e muitas das palavras são ilegíveis. O que o tempo faz às coisas! Vê os títulos, ri-se baixinho da sensação de “eu sei o que aconteceu depois disto” – quase como se tivesse voltado atrás no tempo e estivesse a adivinhar o futuro. Vai ficando escuro e ela não dá por nada. O Sol esconde-se atrás das nuvens de Outono e arrefece. A Maria aperta os botões do casaquinho e larga o jornal – agora sim, impossível de ler – e põe-se a balançar. Primeiro, com as pontas dos pés presas ao chão – só um leve movimento de banco; para trás, para a frente, para trás, para a frente. Depois, à medida que vai ganhando confiança, solta-se. Para trás, para a frente, sentir o vento na cara e a alma em voo livre, cada vez mais alto. Impulso de pernas, força nos braços e flexão abdominal. O céu cada vez mais perto, o céu cada vez mais próximo! Atinge o pico de altitute, fecha os olhos e larga as correntes: para quê segurança quando não há perigo? Abre os braços e plana, em direcção ao horizonte.
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(Ou, pelo menos – e não adianta de nada sermos românticos só por desporto – em direcção à sua noção horizonte).
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Tuesday, April 01, 2008

Encruzilhadas

Não interessa o que a vida quer de nós (ou, por outro lado, hoje não me apetece que interesse). Interessa, sim, aquilo que nós queremos dela. Se as nossas vontades são ou não coerentes, é cá connosco – e, aí sim, ninguém tem mesmo nada que mandar palpites.

Desejo-te. Tenho vontade de te agarrar pelos ombros e de te levar ao céu, de te tocar, de ser tocada, de nos sentir. Prolonga-me. Percorre-me. Faz de mim mulher num só beijo. Por fim, deixa-me dormir com o teu braço a servir de almofada. Toca-me no rosto com as pontas dos dedos, olha-me e diz-me uma lamechice qualquer, típica. Que o Sol nasça, sem trazer consigo a racionalidade perdida/esquecida. Vamos ver mundo, vamos ter o mundo nas palmas das mãos.
Sou feliz só por prazer.
Desejo-te.
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