Wednesday, June 20, 2007

Maiô

O vestidinho de dança preto, simples, de lycra, já está acabado. Tem a saia um pouco comprida, pelo que sobe ao mais pequeno movimento, mas o bódi assenta-me bem. Deixa-me as costas destapadas e as alças finas seguram fransinamente tudo o que há para segurar. É confortável, maleável. Com ele, sinto-me uma bailarina de verdade: não que o seja, de todo, mas essa sensação percorre-me num frenesim e ajuda-me a absorver a magia da música. Abandono-me inteira e deixo que o meu corpo seja o capitão dos movimentos pouco sincronizados que o esquema exige de nós.

Querem pôr uns panos de utilidade duvidosa por cima do meu maiô de bailarina e eu não percebo porquê. Adornar o belo é romper-lhe com a simplicidade e, por inerência, torná-lo mais feio. Ficamos muito mais “nós” apenas assim. Era, aliás, desta maneira, que gostava que me descobrisses. De costas nuas, olhos semi-serrados e dedinhos abertos. Com a minha essência toda ao de cima. A descobrir-me a mim mesma e a um mundo inteiramente novo dentro de um pequeno ringue. As bancadas já não me assustam: transmitem-me antes a energia que, aliada à ligeireza dos movimentos, resulta numa explosão de encantamentos.

Rodopio. Elevo-me. Flutuo. Arqueio os braços e os dedos tocam-se, no alto da cabeça. Faço piruetas, piões, saltos. Movo-me, rastejo, deslizo. Ergo-me. O corpo inanimado do quotidiano, ganha uma vida nunca antes descoberta. O cabelo solto, com ondas a caírem-me sobre os ombros, atrapalha. Apanho-o bem no cimo. Um gesto, uma dança.

Visto a capa e deixo de ser eu. “Pelo céu cinzento/ Sob o astro mudo/ Batendo as asas pela noite calada/….”. Vampiros. A luz apaga-se. Medos. Rodas de pesadelos. Choques. Vermelho e preto, numa mistura de sangue e podridão.

Em posição de avião, com o pé bem arrebitado lá a trás e a cabeça bem esticada cá à frente, os patins não pesam. Fazem parte de mim, são uma extensão das pernas. Deito-me em andorinha e deixo de ouvir a música: apenas as rodas a girar violentamente. Com a cabeça tão próxima do chão, as imagens tornam-se também desfocadas e, quando estou a prestes a perder os restantes sentidos, a flecha mata-me e vou a raspar pelos tacos até que a vitalidade me seja novamente concedida.

Mas eis que tocam as cornetas! A corte prepara-se, é anunciada e entra em palco. Princesa? Donzela? Pergunto-te: "Concedes-me esta dança?" Tu mandas, o baile termina. Assim como a imortalidade prometida.
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(Festival dia 23 de Junho)

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