Tuesday, April 08, 2008

Aparição

A Maria caiu no meio de uma movimentada rua de peões de uma metrópole capitalista qualquer, onde começou imediatamente a ser pisada e empurrada pelos transeuntes. Era como se não existisse. Pior, era como se não devesse existir.
Agarrou em si e sentou-se, muito encolhida (com as mãos a segurarem os joelhos e a cabeça pendente para a frente), na esquina de um prédio alto e com a pintura desgraçada pela poluição do ar. Deixou-se ficar durante tempo indeterminado (mas que pareceu muito), a ouvir excertos de conversas alheias, o ruge-ruge das calças de ganga novas e dos sacos de supermercado e a observar as beatas de cigarros ainda acessas a serem esmagadas por diferentes tipos de saltos-altos.
Foi neste intervalo que, sem que a Maria se apercebesse, um senhor de cabelos brancos e rugas na cara se aproximou dela, com duas mantas dobradas deixado de um braço e um jornal na outra mão. Ficou, num momento de pausa, a observá-la e disse:
“- A menina está a pedir sozinha? Olhe que a si ninguém lhe dá nada! É jovem e forte, pode perfeitamente trabalhar – pensam eles. Ninguém quer saber o que aconteceu consigo”.
A voz era doce e meiga, inspirava confiança. A Maria percebeu que aquele Velho a percebia* e respondeu:
“- Não estou a pedir dinheiro”.
O Velho sorriu (tristemente) e passou-lhe a mão pelos cabelos:
“- Aqui ninguém sabe dar outra coisa. E, às vezes, nem isso.”
Olhou para o céu e para uma montra onde dois manequins de plástico se olhavam de forma vazia (eram de plástico, pois então!) e, depois de um suspiro, sentou-se ao lado da Maria, tapando as pernas de ambos com uma das mantas.
A Maria, silenciosamente, sem pedir (nem com gestos), encostou a cabeça ao ombro do Velho e dormiu. Ele deu-lhe a mão e pensou de si para si:
“- Depois falamos pequena. Agora descansa.”
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* repetição intencional
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7 comments:

Tiago Ramos said...

Perfeito, perfeito.

Só tenho um reparo a fazer, de uma forma humilde... não sintas a necessidade de justificares aquilo que escreves? Cada um interpretará da maneira que achar melhor. Depois de escrito, o texto já não é teu. É de todos os que o lerem.

Lenin aka JR said...

"- Aqui ninguém sabe dar outra coisa. E, às vezes, nem isso."

Acho que é esse um dos maiores problemas da sociedade actual... as pessoas já não sabem ver, ouvir... dar. Não percebem que nem só os bens materiais são importantes. E que por vezes um gesto ou uma palavra valem mais do que simples dinheiro.

...Cada vez gosto mais da Maria e das suas aventuras. E dos personagens que se cruzam com ela e que, com ela, nos fazem pensar.

Beijos, muitos.
João

Rosa dos Ventos said...

Os olhares vazios não estão só nos manequins de plástico!

Abraço

Lenin aka JR said...

Desculpa monopolizar o espaço dos comentários mas queria apenas dizer que hoje voltei a ler este texto e ainda gostei mais... mais do que tinha gostado da primeira vez que o li (como se isso fosse possível). Acho que fiquei impressionado com a bondade do Velho... já não há pessoas assim. E se as há não se mostram... escondem-se do mundo e de quem passa.

Mais Beijos.
João

Anonymous said...

Mais uma vez maria dá o ar da sua graça!
As suas/tuas palavras formam um autentico puzzle mirabolante, ou talvez mesmo perfeccionista, que inevitávelmente se trazduz numa obra prima!

P.S Procura na superficie do teu hipocampo,(pois a acção é recente)de algo relacionado com crepes....alguma ideia?

A inclusão da minha entidade no comentário, era um desperdicio de tempo, porque so te lembrarás de mim, devido a um momento passado comum a ambos, ou conseguires detectar-me no teu campo visual como se sucedeu em Gouveia! Difícil?

A menina de aspas saiu da boca para fora!!

Joana said...

deixa-me devorar o que escreves, já que não consigo escrever nada meu. deixa-me sorrir, porque há pessoas como tu.

Luisa Oliveira said...

Tiago - Sabes como aprecio os teus reparos. Têm muita influência no percurso que fiz e espero que me continuem a ajudar a evoluir. Nunca tinha pensado dessa forma mas tens razão - a necessidade que tenho de me explicar será uma forma de insegurança?

João - Haver há. Claro que há. Este senhor é uma homenagem a essas pessoas: que não se mostram, claro está, são discretas. Vão aparecendo a quem precisa. Garanto-te que é verdade - eu já conheci uma pessoa assim.

Rosinha - Era uma metáfora irónica. Claro está que não estão só nos manequins! Bem estaria o Mundo.

Anónimo - Estava tão certa! Essa dos crepes é que me baralhou as ideias todas...

Ju - Melhores dias virão. Acredita.