Saturday, June 28, 2008

Intervalo de pano

Do outro lado da rua está uma mulher a tocar violino. Não é artista nem música de profissão – ganha apenas a vida a tocar violino. Foi autodidacta, tudo o que sabe aprendeu em livros ou de ouvido. Talvez por isso os erros técnicos sejam frequentes e notórios, o que não significa que a melodia não seja interessante e que a expressividade não compense tudo isso (os enganos, o cheiro, o cenário…). A violinista (apesar de tudo, é-o) tem duas crianças – lindas, lindas, sujas e lindas! – filhas de pai incerto. Não foram fruto de nenhuma paixão cinematográfica e cor-de-rosa. Nasceram, sim, das necessidades do corpo (é preciso falar destas coisas com naturalidade, segundo o que oiço dizer). Carência. Pura carência, a todos os níveis – que o prazer físico não resolve, mas ajuda a disfarçar. As crianças, essas mais dadas à moral (que, não sabendo o que é, usam por natureza), descobrem-se nos carrinhos de lata com que brincam

Que sei eu, disto tudo? Estou apenas do outro lado da rua, parada a olhar para uma mulher a tocar violino. E, por instantes, os meus preconceitos vêem com clareza as duas crianças, a barraca modesta (até para barraca), a mulher nua, na cama, a gemer, as moedas pretas que comprarão o pão. Tudo isto é natural – que assim seja e que eu o pense sem, na verdade, o saber. É tão natural que me mete nojo e me agonia.

É tão natural que me mete nojo e me agonia.

7 comments:

Tiago Ramos said...

Muito bom. Já tinha saudades...

Rosa dos Ventos said...

Felizmente que a "agonia" dos exames já passou.
Agora é tempo de marear, mesmo com a costa à vista...
Também já tinha saudades como o Tiago.
Eu gosto de tudo o que escreves! ;-))

Abraço

Anonymous said...

Olá, cara Miss pijama!

Vim ler o teu blog outra vez e apenas gostaria de dizer que gostei muito deste texto que escreveste...especialmente porque mete violinos e coisas desse género.

Pedro

Maria João said...

"Do outro lado da rua está uma mulher a tocar violino. Não é artista nem música de profissão – ganha apenas a vida a tocar violino. Foi autodidacta, tudo o que sabe aprendeu em livros ou de ouvido."
Que pormenor tão bonito!

Luisa Oliveira said...

Tiago - Obrigada, sabes como esses incentivos são bons. Começaram as férias, espero que agora haja mais tempo e mais espaço.

Rosa - Felizmente, sim! Obrigada, mesmo. Outro abraço, forte.

Caro deputado Pedro - Ainda bem que gostaste :) Tenho que "meter" mais vezes a música "ao barulho". (Confesso que o facto da minha irmã tocar violino me faz ter uma preferência mal dissimulada pelo dito instrumento, razão pela qual é sempre o eleito).

Maria - Os pormenores são sempre as coisas mais bonitas, não é? *

Joana said...

continua, pequena, continua! :)

Luisa Oliveira said...

Ju - Continuarei pequena, continuarei ;)