Saturday, May 31, 2008

Expliações. E narcisismo.

"- Shiu. Anda cá. Dá-me a mão. Tens os dedos frios! Shiu, tem calma. Toma-me. Escreve em mim, escreve sob mim, sobre mim, sobre nós. Não percebes que o não consegues evitar? Ou isso, ou nada. Deixa as tuas personagens descansar, também têm vida, também têm falhas, exiges demasiado delas. Deixa-te estar aqui, um bocadinho ao pé de mim. Vamos, agarra na inspiração que te dou e besunta-me de palavras. "

Não percebes que já o fiz? Passo o tempo a fazê-lo. Mas não posso publicar isso, não posso mesmo. Sim, sou egoísta, e depois? No dia em que o fizer é porque nos ultrapassei.

"- Enganas-te. Esse dia significará apenas que nos assumiste."

Ou isso. Mas como posso eu fazê-lo se tu não o fazes? Além do mais, faço-o todos os dias. Todos os dias me assumo em ti e deixo que te assumas em mim. O que é que os outros são chamados ao caso? Deixemo-nos de conversas. Aquela estória não vai sair da gaveta. Pelo menos para já, pelo menos por agora. Daqui a um tempo, quem sabe, daqui ao tempo em que eu me sentir confortável com isso.
...
Peço desculpa. Peço desculpa por vos privar do melhor que alguma vez escrevi, peço desculpa de não publicar "há que tempos" - e, a verdade, é que nunca andei tão envolvida nem nunca escrevi tão compulsivamente. Acontece que, ao contrário da Maria que se ia construíndo capítulo a capítulo (e que continua a construír-se e a aparecer de vez em quando), as duas estórias que ando a desenvolver já apareceram em mim completas - e não posso permitir intromissões externas até as ter prontas. Seja como for, uma está quase e deve aparecer em breve: já aqui fazia falta uma estória sequêncial e já me fazia falta a mim o compromisso disso e o trabalho que envolve. Não deixem, portanto, de vir, por favor. A sério que está para breve.

Thursday, May 08, 2008

Prioridades de meninice

É uma criança bonita, sorridente. Aproxima-se da cabine, põe-se em “bicos dos pés”, estica-se toda e consegue que a mãozita tímida apareça ao balcão e se torne visível para quem está do outro lado. Deixa cair as três moedas que tem entaladas entre os dedos de modo a rolarem e a fazerem barulho e pede, na voz melodiosa de quem ainda é acompanhada por fadas:
“ – Um bilhete para o carrossel, por favor”.
O barulho da feira obriga-a a repetir a pergunta.
“- Um bilhete, por favor”.
Sente o papel rugoso contra a pele e afasta-se, sem mais palavras. O carrossel é dos antigos, com cavalos de madeira pintada suspensos num bonito varão, de duas cores entrelaçadas. O toldo é vermelho e branco, como não podia deixar de ser. A criança fica parada, durante várias voltas, a apreciar uma magia que nem toda a gente vê. O colorido veloz brilha nos olhos dela e o bilhete é apertado com as duas mãos, enquanto o boneco de trapos espera, inexpressivo, debaixo do braço esquerdo.
A hora de jantar aproxima-se e, apesar de ainda haver a claridade do lusco-fusco, o movimento esmorece. O carrossel pára e prepara-se para um intervalo. A menina, que até aí não tinha saído do seu lugar, aproxima-se do maquinista e diz:
“ – Eu ainda não gastei o meu bilhete”.
O senhor, já velhote, derrete-se.
“ – Sobe que eu ligo-o. O motor ainda está quente, não custa nada”.
A menina aproxima-se do cavalo mais pequeno – um pónei, ainda – e prende o boneco a uma das pegas de metal, onde é suposto as crianças medrosas segurarem-se.
“- Então, tu não sobes? Precisas de ajuda?”
“- Ele é que quer andar. Eu só quero ver”.
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