Sunday, August 17, 2008

Intervalos de ti.

Foi contigo e com os momentos em que não te tive - mais, até, com estes - que vivi a fase crítica da adolescência. Que a construí, que me obriguei a ser como todos os todos, a ser normal nos sentimentos e nos desejos. Conheci-te algures num dia perdido da infância, entre brincadeiras e recreios de areia, mas só te re-conheci quando precisava desesperadamente de ti. Tu percebeste e gostaste, fizeste-me perceber e gostar também e arrastámo-nos os dois entre promessas tácitas e empurrões falsos. Quis-te mudar como se muda a mobília de um quarto ou se altera a forma de arrumar a roupa num armário. Quis-te - todos os dias, dia após dia - mas não te quis. Queria o teu outro lado, o lado que eu insistia que via, que eu insistia que havia. E via - oh, se via! -, e sabia-o real, mas, só para me contrariares (gostas disso, tu), quanto mais eu o procurava mais tu o negavas. Foi nestes intervalos de ti que te amei. Foi nos reflexos do teu outro eu, nas vertigens dos teus dedos e da tua alma, nos momentos em que o teu rosto me fitava calado, na tua demanda absurda de negar as palavras. Escrevi-te promessas e escrevi-nos, vezes sem conta, até desbotar o papel. Amarrotei-o na palma da mão e levei-to, meia acanhada, meio nervosa, meio ansiosa. Leste e sorriste, fizeste comentários sobre a forma, a composição, a gramática em geral e a escolha do tempo verbal em particular - isto sem nunca, nem por um bocadinho, aludir ao conteúdo. Tem graça que - que irónica, a vida - quanto mais me negavas a conversa franca, mais nos misturávamos com a estória, com a nossa estória, e nos fundíamos numa simbiose tão perfeita que se tornou indissociável. Acontece que, entre malabarismos e contornos abertos, nunca te disse a verdade: não tenho pretensões de lhe/nos escrever um fim ou de lhe dar futuro. Há um dia em que, simplesmente, ela não mais vai sair da gaveta. Vai, simplesmente, perder-se entre outras coisas. É por isso que eu sei que é a adolescência pura e lixada a pregar-me a devida rasteira - porque nunca nos entrevi entre as linhas do futuro - não contigo, pelo menos, talvez com o teu outro eu tenha vislumbrado uns raiozinhos ténues de vida. Ah, ter o mundo concentrado num frasquinho! Obrigada por isso, meu caro, obrigada pela adolescência. Mas, sabes, começa a ser hora - o cartão de eleitor já espreita na carteira e as exigências não me permitem o habitual desgaste quotidiano que, convenhamos, era um luxo desnecessário.
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Claro que podes sempre vir comigo,
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mas não te aconselho. Deixa-te estar que estás bem. Eu levo a gaveta e levo a criança que há em mim pela mão, a servir de escudo. Começa a ser hora, começa - Lisboa, querida e desgraçada Lisboa!
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15 comments:

Anonymous said...

Arrepiante! Quando eu penso que não consegues fazer melhor tu superas-te e premeias quem te lê com textos cada vez mais maduros, cada vez mais belos, cada vez com mais conteúdo. Já nem sei que te diga amiga.

Beijinho *

:)

Rosa dos Ventos said...

Regressaste em plena forma, com a tua criatividade tão especialmente lírica/onírica!
Usa bem o cartão de eleitora! :-))

Abraço

Tiago Ramos said...

E que grande intervalo nos fizeste passar, sem a tua escrita.
Gostei muito. Parabéns.

Anonymous said...

Cada vez melhor !

Anonymous said...

Cada vez melhor !

Raquel Costa said...

Genial, numa palavra só.
Intervalos de ti...mas por pouco tempo :)
Luisinha, estas no meu top das leituras, permanentemente.

Ouve-me bem isto: És o meu orgulho !

adoro-te e adoro-te

paula maria said...

PARABENS! Arrepiante de facto *

Luisa Oliveira said...

Zé - Só precisas de continuar a vir :) Obrigada.

Rosinha - Regressei, e isso basta. Usarei ;)

Tiago - Fases, não é? Sabes isso melhor do que muita gente... Obrigada!

Gaby - Obrigada.

Raquel - Muito pouco tempo, espero. E tu o meu, minha cachopa. Idem.

Paula Maria - OBRIGADA. Espero que voltes *

paula maria said...

Sabes sempre do que falas *

Unknown said...

- obrigada ritinho por teres apresentado o meu blog à paula maria...

- de nada, boa amiga :)

Maria João said...

Tão bonito, Luísa!

"Eu levo a gaveta e levo a criança que há em mim pela mão, a servir de escudo."

Adorei.

(Aceitei-te no msn, mas a minha net anda passada e aquilo foi a baixo. Quando voltei a ligar não estavas nos meus contactos :S Depois fui aos pedidos pendentes e aceitei lá mas não apareceu outra vez! Por isso adicionei-te eu (acho que coloquei o mail certo), mas quando fores ao msn e eu não estiver lá deixa-me uma msg offline ou manda-me um mail para eu adicionar se não tiver escrito o mail correcto, pode ser? Beijinho *)

João Chaleira said...

Não consigo acrescentar muito ao que já foi aqui dito... O que a maioria de nós faz com um punhado de palavras não se compara à autêntica arte que consegues fazer.
Praticamente todos nós conseguimos colocar este texto numa passagem da nossa vida. Necessária, portanto.

Mais uma vez parabéns*

Luisa Oliveira said...

Paula Maria - Nem sempre, nem sempre*

Ritinho - Obrigada, bom amigo. Sempre me saiste um valente gabarolas ;)

Maria - Obrigada! (Vou já já tratar disso).

João - Necessária, penso que é isso mesmo. Mas com um fim muito óbvio. Obrigada!

Rita Silva Avelar said...

Parabéns, adorei o teu blogue. Bom conteúdo. :) posso deixar o teu link no meu blogue?

Beijo

SaLomÉ said...

Querida mana,
nem sabes o quanto gosto de "te" ler. Desta vez lembrei-me de quando me chamavas ao escritório apenas para te dar a minha opinião sobre um texto que tivesses escrito.

E a criança! Essa, que não te deixará nunca (simplesmente não te imagino sem essa parte), tomará conta de ti em Lisboa, essa estúpida cidade que te cativou.

(adorei)
Beijinho*