Saturday, June 28, 2008

Intervalo de pano

Do outro lado da rua está uma mulher a tocar violino. Não é artista nem música de profissão – ganha apenas a vida a tocar violino. Foi autodidacta, tudo o que sabe aprendeu em livros ou de ouvido. Talvez por isso os erros técnicos sejam frequentes e notórios, o que não significa que a melodia não seja interessante e que a expressividade não compense tudo isso (os enganos, o cheiro, o cenário…). A violinista (apesar de tudo, é-o) tem duas crianças – lindas, lindas, sujas e lindas! – filhas de pai incerto. Não foram fruto de nenhuma paixão cinematográfica e cor-de-rosa. Nasceram, sim, das necessidades do corpo (é preciso falar destas coisas com naturalidade, segundo o que oiço dizer). Carência. Pura carência, a todos os níveis – que o prazer físico não resolve, mas ajuda a disfarçar. As crianças, essas mais dadas à moral (que, não sabendo o que é, usam por natureza), descobrem-se nos carrinhos de lata com que brincam

Que sei eu, disto tudo? Estou apenas do outro lado da rua, parada a olhar para uma mulher a tocar violino. E, por instantes, os meus preconceitos vêem com clareza as duas crianças, a barraca modesta (até para barraca), a mulher nua, na cama, a gemer, as moedas pretas que comprarão o pão. Tudo isto é natural – que assim seja e que eu o pense sem, na verdade, o saber. É tão natural que me mete nojo e me agonia.

É tão natural que me mete nojo e me agonia.